que eu não minta quando escrever.


carta-resposta às páginas soltas de talissa.


ao chorar, debruço-me sobre os meus joelhos e encosto os lábios na pele que é minha. repouso os olhos, depois as mãos sobre o chão. procuro deitar lentamente tentando não me apegar dessa vez.

não te vejo por hora, mas te leio. organizo as letras do alfabeto e identifico as palavras, lentamente lhe reconheço como um texto-água turvo, nebuloso e frio, não que suas ordenadas palavras me esfriem, contudo há a percepção em mim do que me falta.

quantas vezes voltamos para ele? ou para eles? de tempos em tempos esvazio o coração-casa esperando que ele volte.

mas muita calma, coração
que tudo há de ficar bem

e quando não - Olhos Grandes,
desminta, aos poucos, para você mesma, os anos em que amou o imaginário.
respire lentamente e veja as grandes concretudes: a casa anoitecendo, os móveis da sala, os vazos com as pimentas, as flores, o quarto grande, a cama larga e você mesma deitada de lado.





Porque roupa a gente lava na casa da Talita!
não sabe dizer qual foi a primeira coisa que guardou na memória, mas não ignora quando e onde estava.

vasculha, nada.
- preguiçoso!

sempre fiquei ao lado do meu pai nas corriqueiras discussões caseiras. nas discussões sérias,não tinha como,ele ia embora,tinha que ficar ao lado de quem permanecia. mas minha vontade as vezes foi de fugir também. de todos. dos irmãos também. o mais estranho de fazer parte de uma família recém formada, é que ela pode se desformar a qualquer momento. com isso, sempre tive o ímpeto de acalmar discussões. é como uma mania, aparto brigas no trabalho, entre amigos, brigas no trânsito. não quero que o mundo se desfaça como em alguns momentos se desfez minha família.
acho que ficava ao lado do meu pai nas discussões, porque não me agradava ter que concordar com as opiniões passionais de minha mãe, já que eu, por outro lado, sempre afrontei quem é muito feminino. durante muito tempo recusei poesia escrita por mulheres, quem diria... acho que queria ter em mim a força masculina,por isso procurava me interessar por augusto dos anjos, política, futebol. achava que se eu tivesse algo que os homens tem na cabeça,nunca seria abandonada por um. uma linha de raciocínio que só podia existir dentro de uma cabeça pequena de criança. ou de uma cabeça pequena de gente grande também. raciocínio abandonado com o fim do primeiro namoro. e muitos livros escritos por mulheres colorindo minha estante. sentimentos femininos sim. nunca feministas. não tenho mais medo de ser abandonada por meu pai.

















vá imaginando o que vou lhe escrevendo. a avó italiana se apóia e serve de apoio para a tia, depois ela carrega um bebê num ambiente bastante hostil. o bebê sou eu, eu há muitos anos, não posso me lembrar, mas era eu, reconheço-me ao olhar para dentro de meus próprios olhos. uma selvageria posterior em que instintos e pura perversidade misturam-se, misturam-ser. interessante é usar 'pura' antecedendo perversidade, mas não me confundo quando escrevo, não me confundo quando uso meu órgão de falar. o bebê talvez não fosse tão novo assim, é preciso que eu deixe claras as coisas para mim mesmo. era uma criança. a criança sou eu, mas há muitos anos. impedido de brincar por estar bastante enfermo, a tal criança distrai-se com os assuntos de mortos dos pais, avós e tios. eu tentava preparar um café e fui interrompido porque o pai chegara. o pai sempre interrompendo. por isso, que pela noite, dentro de algum lugar, eu matava e divertia-me com a crueldade que eu sinto em ofender, molestar e torturar todos os masculinizados. acordar é sempre um processo doloroso, o sono induzido faz ainda mais sentido quando se acorda e percebe-se que todo o lixo que você-eu tentei entulhar no quarto dos fundos aparece derrubando portas e paredes, derrubando telhados e lhe deixando quase nu no banheiro cheio de poças d'água e lama.



carta piquenesca nº 5


(lavadeiras entoam algo num clima quase sagrado)

lavadeira 1 - Ai,ai.
Lavadeira 2 - Pois é.
Lavadeira 3 - Que fome.

o que vem depois da pergunta: o que eu vou ser quando eu crescer?

esse aqui é o meu amigo,o ponto de exclamação: !

o meu pai é alto e magro,e não fala mais comigo.
o meu avô é gordo e baixo,e não é mais meu amigo.
eu me chamo chiquinho, e acho que não quero ter filhos.

a idéia do fragmento é cada vez mais forte na minha cabeça.
não quero contar grandes estórias, também não quero escrevê-las.
uma estória pode ter grandiosidade sem ser extensa.

onde pararemos?
pararemos?

Lavadeira 3 - Você podia me passar a receita?
(pausa longa)
Lavadeira 1 - Não minha filha,eu não podia.





Uma porção de unhas ásperas me arranham a perna e sobem em direção a coxa. Estamos diante da porta, você e eu, e eu reconheço nossa diferença de idade. Há uns cinco ou seis deles perto de nós e nós os abraçamos, os colocamos no colo, desenterramos suas unhas de nossa carne. São filhotes, como nós, ou já não somos? Estávamos na porta da frente de uma casa, que não era nossa, mal víamos quem morava alí, por isso, um lugar neutro. De repente a mãe aparece e grita conosco. Tento esconder cada gato dentro de minha blusa, e eles desconfortáveis e sem ar arranham-me a barriga, e é então neste momento em que começo a arremessá-los contra a porta, e provavelmente, eles sentem dor.